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Construir é colaborar com a terra; é pôr numa paisagem uma marca humana que a modificará para sempre; é contribuir também para essa lenta transformação que é a vida das cidades. Quantos cuidados para encontrar a situação exacta de uma ponte ou de uma fonte, para dar a uma estrada na montanha a curva ao mesmo tempo mais económica e pura. (...)
Abrir portos era fecundar a beleza dos golfos. Fundar bibliotecas era ainda construir celeiros públicos, acumular reservas contra um inverno de espírito, cuja aproximação certos sintomas me fazem prever, mau grado meu. Reconstruí muito: é colaborar com o tempo sob o seu aspecto de passado, apreender-lhe ou modificar-lhe o espírito, servir-lhe de muda para um mais longo futuro; é reencontrar sob as pedras o segredo das origens. A nossa vida é breve: falamos sem cessar dos séculos que precedem ou se seguem ao nosso como se nos fossem totalmente estranhos; contudo eu tocava-lhes nos meus manejos com a pedra. Aquelas paredes que eu escorava estão ainda quentes do contacto com corpos desaparecidos; mãos que ainda existem acariciarão estes fustes de colunas. (...)
(...) Em Roma utilizava de preferência o tijolo eterno, que só muito lentamente volta à terra de que nasceu e cujo esmagamento ou imperceptível pulverização se faz de tal maneira que o edifício permanece montanha mesmo quando deixou de ser visivelmente uma fortaleza, um circo ou um túmulo. Na Grécia e na Ásia empregava o mármore local, a bela substância que uma vez talhada se conserva fiel à medida humana, de tal forma que o plano de todo o templo fica contido em cada fragmento de tambor quebrado. A arquitectura é rica de possibilidades mais variadas que as quatro ordens de Vitrúvio nos fazem supor; os nossos blocos, como os nossos tons musicais, são susceptíveis de reagrupamentos infinitos. O Panteão fez-me remontar à velha Etrúria dos adivinhos e dos arúspices; o santuário de Vénus, pelo contrário, arredonda ao sol formas jónicas, profusões de colunas brancas e rosadas em volta da deusa de carne donde saiu a raça de César. O Olímpeon de Atenas era o contrapeso exacto do Parténon, exposto na planície como o outro se ergue na colina, imenso como o outro é perfeito: o ardor rendendo culto à calma, o esplendor aos pés da beleza. As capelas de Antínoo e os seus templos, câmaras mágicas, monumentos de uma misteriosa passagem entre a vida e a morte, oratórios de uma dor e de uma felicidade sufocantes, eram o lugar da oração e da reaparição. (...)
(...) Quase tudo quanto o nosso gosto se dispõe a tentar existiu já no mundo das formas; passei ao da cor: o jaspe verde como as profundezas marinhas, o pórfiro granuloso como a carne, o basalto, a sombria obsidiana. O vermelho denso dos estofos ornamentava-se de bordados cada vez mais aperfeiçoados; os mosaicos das paredes ou dos pavimentos nunca eram bastante dourados, bastante brancos ou bastante escuros. Cada pedra era a estranha concreção de uma vontade, de uma memória, por vezes de um desafio. Cada edifício era o plano de um sonho. (...)
(...) Queria que as cidades fossem esplêndidas, arejadas, regadas por águas claras, povoadas por seres humanos cujo corpo não fosse deteriorado pelas marcas da miséria ou da servidão, nem pela vaidade de uma riqueza grosseira: que os escolares declamassem com voz justa lições que não fossem ineptas; que os movimentos das mulheres, no lar, tivessem uma espécie de dignidade maternal, de tranquilidade poderosa; que os ginásios fossem frequentados por jovens que não ignorassem jogos nem artes; que os pomares produzissem os mais belos frutos e os campos as mais abundantes colheitas. Queria que a imensa majestade da paz romana se estendesse a todos, insensível e presente como a música do céu em marcha; que o mais humilde viajante pudesse vaguear através de um país, de um continente a outro, sem formalidades vexatórias, sem perigos, na certeza de encontrar em toda a parte um mínimo de legalidade e de cultura; que os nossos soldados continuassem nas fronteiras a sua eterna dança pírrica; que tudo funcionasse sem dificuldades - as oficinas e os templos; que o mar fosse sulcado por belos navios e as estradas percorridas por frequentes atrelagens; que, num mundo bem em ordem, os filósofos tivessem o seu lugar e os dançarinos também. Este ideal, modesto, em suma, seria muitas vezes quase atingido se os homens pusessem ao seu serviço uma parte da energia que despendem em trabalhos estúpidos ou ferozes; circunstâncias felizes permitiram-me realizá-lo parcialmente durante este último quarto de século. Arriano de Nicomédia, um dos melhores espíritos deste tempo, gosta de me lembrar os belos versos em que o velho Terpandro definiu em três palavras o ideal espartano, o modo de vida perfeito a que a Lacedemónia aspirou, sem jamais o atingir: a Força, a Justiça, as Musas. A Força estava na base, rigor sem o qual não há beleza, firmeza sem a qual não há justiça. A Justiça era o equilíbrio das partes, o conjunto das proporções harmoniosas que nenhum excesso deve comprometer. Força e Justiça não eram mais que um instrumento bem afinado nas mãos das Musas. Toda a miséria, toda a brutalidade deviam ser interditas como insultos ao belo corpo da humanidade. Toda a iniquidade era uma nota falsa a evitar na harmonia das esferas. (...)
Marguerite Yourcenar in "Memórias de Adriano"