Em 1945, Paul Valéry anunciava uma nova era de finitude: «le temps du monde fini commence», dizia então. É improvável, porém, que imaginasse quanta a evidência e actualidade das suas palavras nos dias de hoje, pois não só a finitude adquiriu importância crescente nos últimos 60 anos, como contaminou, em definitivo, a aventura humana.
Falar desta finitude é falar de Escassez. E mais do que a qualidade do que há em pouca quantidade, a Escassez precisa-se como reconhecimento do que tende à rarefacção, do que tende a não existir mais. Com este quadro, apresentam-se, de seguida, três tentativas sumárias de reflexão, ponderando o enquadramento da Escassez no nosso tempo, a eventual influência no ofício do arquitecto e alguns dos desafios colocados à própria Arquitectura.
Ao contrário do que poderia pensar-se a partir do anterior enunciado, a questão da Escassez não é de hoje. Desde sempre acompanhou a aventura humana, condicionando-a em distintos momentos e estimulando-a noutros. Porém, as novas dimensões e estatuto da Escassez na contemporaneidade são diversas e desconhecidas de outrora. Obrigam, por isso, a uma outra visão da realidade - que é, também, uma outra visão de nós mesmos - e à eventual reconstrução de uma verdade ou verosimilidade da nossa existência, na exacta medida da caducidade geral dos conceitos que infra-estruturaram e determinaram as ideologias do progresso, em particular na primeira metade do século passado.
Aliás, em rigor, não se trata de uma reconstrução, pois esta implica a reposição de algo anteriormente construído. Nem se trata, como é corrente dizer-se, de uma crise, pois esta remete para um passado que se admite repetível. Antes do mais, trata-se de verificar a Escassez como uma dupla finitude que vem alterando profundamente o modo como os homens co-habitam neste pequeno planeta.
A primeira, a finitude do mundo, resulta da constatação de que detemos o poder de transformar como nunca antes, incluindo o poder de extermínio total da condição humana. Sabemo-lo, pelo menos, desde o trágico momento de Hiroxima. A segunda, a finitude da Terra, resulta da constatação de que os recursos disponíveis no planeta são limitados, muitos não-renováveis, e de que está em causa o próprio equilíbrio planetário que sustenta a vida tal como a conhecemos. Sabemo-lo desde a primeira crise petrolífera e perspectivamo-la na anunciada crise hidrológica, na bomba demográfica - a humanidade quadruplicou durante o século XX - e nas confirmadas alterações climáticas.
Por isso, sem qualquer demagogia, é possível dizer-se que as ideologias do progresso estão hoje muito fragilizadas. À crença no «sempre mais» como valor eterno e absoluto, ainda omnipresente nos nossos dias, tem implicado um esforço de crescimento geométrico em extracção, produção e consumo que não é mais compatível com as perspectivas da Escassez contemporânea e vindoura. E, para além de obviamente condenado ao fracasso, este «sempre mais» vem aprofundando um caminho que poderá conduzir-nos à regressão, senão mesmo ao colapso civilizacional.
Ao invés do que poderia parecer, este não é, de todo, um discurso pessimista sobre a realidade. A Escassez não implica uma tabula rasa ou o fim da evolução. Obriga-nos, no entanto, a equacionar o mundo e a terra como coisa una e finita, e a pensar o futuro enquanto tal. Obriga-nos, assim, a tomar decisões e, muito possivelmente, a mudar o rumo e o estilo de vida. Obriga-nos, também, ultrapassados o projecto moderno e a desconstrução pós-moderna, a novos conceitos colectivos e globais que infra-estruturem ideologias de sustentabilidade que - pela primeira vez desde há muito tempo - implicam conciliar, num só sistema, a Natureza e a Cultura. E obriga-nos, por fim, a saber implementar este projecto colectivo e global na diversidade regional e local, nas diferentes actividades humanas, entre a serena convivência com o planeta e a responsabilidade de salvaguardar a humanidade vindoura.
A Escassez deixou de ser mera questão ou acidente de percurso e, tal como anunciado por Valéry, passou a premissa ou paradigma de uma nova era da aventura humana.
A influência deste novo paradigma no ofício de arquitecto é ainda incerto e menos evidente do que poderia parecer à primeira vista. Desde logo porque o arquitecto actua numa pequena parte do mundo e da terra, raramente o faz sozinho, pois, em geral, responde a solicitações de outrém e trabalha em equipa com outros profissionais, e não detém o verdadeiro poder de mudar, pois este está quase sempre nas mãos dos políticos e financeiros. E, no entanto, a Escassez vem gerando e apresenta hoje problemas que não podem mais ser ignorados pelo arquitecto e que, pela sua magnitude, permitem alimentar a sua capacidade e imaginação prospectivas e, até mesmo, recentrar a sua profissão.
Mantenho, aliás, a convicção de que os arquitectos, antes mesmo do pensar e fazer arquitectura, devem procurar reflectir sobre a condição humana na sua dupla vertente: enquanto aventura do homem e enquanto natureza própria ao homem. E que esta reflexão permite conhecer melhor a mais profunda razão de ser do próprio ofício de arquitecto em, pelo menos, dois aspectos fundamentais.
O primeiro, apesar de todas as limitações, decorre da plena consciência de que ser arquitecto implica a responsabilidade social de ajudar a construir o habitar do homem, de delimitar lugares onde vivam, de contaminar positiva e activamente um estado de coisas através do projecto. Decorre, também, do reconhecimento de que se Ser Humano significa colocar o presente ao serviço do devir, este ser em projecto, no arquitecto, submerge a totalidade da sua actividade.
O segundo decorre da constatação de que o projecto - neste seu duplo sentido - está no âmago da actividade do arquitecto e, em larga medida, é legitimador da própria Arquitectura. Não envolve apenas um conjunto de croquis, planos e maquetas, nem implica a estrita obediência a uma solicitação ou a uma inédita conformação, nem mesmo evoca um vago desejo de fazer ou um fazer esgotado em desejo, por mais profissional que seja a solução. Antes, determina um processo - de acção e omissão críticas - que responde a uma realidade concreta e que antecipa sempre uma realidade futura. Por isso, o arquitecto está destinado a actuar nas condições do seu tempo e a perspectivar o outro que virá, exigindo-se competência projectual, distância crítica e responsabilidade ética.
Ora, vivemos num planeta em forçada depredação, em que mais de 80 por cento da humanidade vive em aglomerados urbanos e em que 1/6 da população mundial não tem casa, ou seja, mil milhões de pessoas. Não é difícil inferir que o ofício do arquitecto, senão mesmo a respectiva sobrevivência, passa por equacionar, de algum modo, esta condição global na sua actividade. Porém, dado que esta actividade está sempre confinada a escalas mais ou menos locais, é este o contexto que revela, em cada projecto, essa mesma condição. Dir-se-ia que a primeira estabelece o pano de fundo que limita e estimula o exercício e a responsabilidade social do ofício e que a segunda estabelece os panos de cena que concretizam esse exercício e essa responsabilidade em coisa construída.
A influência da Escassez no ofício de arquitecto passa, desde logo, por pensá-lo na complexidade e diversidade do mundo, habilitando-o a actuar em qualquer situação, incluindo as que impõem condições severas, extremas e meios muito limitados ou rudimentares. Passa, também, por pensá-lo capaz de contaminar-se pelas melhores experiências locais no quadro global, com imaginação e perspicácia. E passa, sobretudo, pela capacidade crítica de saber escolher e decidir, ou seja, de saber estabelecer juízos de valor para cada decisão do próprio processo de projecto, tendo a finitude como fonte permanente de aferição e de estímulo.
Entre os desafios - também incertos na sua totalidade - que a Escassez coloca à Arquitectura, há um, pelo menos, que emerge evidente. A progressiva formulação de conceitos que infra-estruturam ideologias de sustentabilidade, unindo Natureza e Cultura, terá que encontrar resposta disciplinar, dado que a Arquitectura, pelo menos no mundo ocidental, formulou-se quase sempre por confronto ou substituição da Natureza. Há, por isso, um longo caminho de reflexão a percorrer quando, neste novo patamar, o valor de um bem arquitectónico surge agora idêntico ao valor de um bem natural e quando todos os bens terrestres - culturais e naturais - estão sujeitos à decisão criteriosa do que devemos preservar e do que podemos aceitar transformar ou até mesmo, em definitivo, perder.
Com razoável probabilidade, muitas das respostas mais duradouras encontram-se no corpo, tradição e praxis disciplinares da Arquitectura. Bastará recordar, entre tantas possibilidades, que a génese da própria Arquitectura provém do habitar do homem na terra, que há uma longa tradição de arquitecturas populares que desde sempre lidaram com a escassez, que há uma forte tradição erudita que, pelo menos desde Goethe, procura a convergência da arquitectura com a natureza, e que o próprio território é, em maior ou menor grau, substância fundamental no processo do projecto arquitectónico.
A invés, parecem resultar fragilizadas as respostas que, em face deste novo paradigma, restringem a Arquitectura, enquanto coisa construída, a um mero produto, a uma questão de linguagem ou a uma dimensão objectual, para além das que procuram analogias directas com a Escassez. Neste último caso, mais óbvio, situam-se tanto as que trilham o caminho da redenção e eficiência tecnológica e/ou ecológica, como as que forçam a Arquitectura a uma estética da escassez. Menos óbvio, porventura, é o primeiro caso, apesar de não ser difícil constatar que a redução da Arquitectura a um mero produto incorre no risco da excessiva mercantilização e submissão às regras do consumo, que a redução a uma questão de linguagem abre caminho à tirania da novidade imposta pelo mercado e a complexidades formais desnecessárias - nomeadamente pela efémera inspiração ou excessiva dependência da tecnologia digital - e que a redução a uma dimensão objectual abusa da autonomia da coisa construída e desvincula-a da prestação territorial.
Outras respostas encontrar-se-ão, porventura, noutras áreas disciplinares, equacionando conceitos ligados à Escassez - da entropia à reversibilidade, da reciclagem ao «ready-made» - na própria praxis arquitectónica. Aliás, diga-se por fim, parte substancial da resposta disciplinar resultará de um somatório de pequenos passos, à medida que alguns dos projectos, informados pela finitude, forem estabelecendo juízos paradigmáticos sobre as respectivas acções, e à medida que algumas das sínteses construídas forem operando, testemunhando e abrindo novos caminhos neste mesmo âmbito.
Ora, as acções do projecto incidem sempre sobre parâmetros que são parte substancial do problema específico em causa, tais como o território, o programa e a materialidade, procurando operá-los em sínteses precisas, em coisa construída e habitável. E estes parâmetros podem, também, constituir objecto de reflexão per si. Ou seja, o território tanto pode e deve ser equacionado num sentido mais lato, na procura simultânea de respostas à crescente urbanização do planeta e à diminuição dos recursos naturais, entre lógicas e modelos de conformação, interacção e optimização (em que as redes de domínio público, infra-estruturas e energia jogam papel relevante), como pode e deve, em sentido estrito, informar cada projecto a partir da respectiva totalidade circunscrita, continuando-se ou reinventando-se em durabilidade matricial na coisa a construir. E o programa tanto pode e deve ser equacionado num sentido lato de responder, como nos anos 50 60 e 70 do século passado, à questão central da habitação para todos, agora entre a sustentabilidade e o exercício da diferença, como pode e deve, no sentido estrito de cada projecto, interrogar-se em si mesmo e/ou indagar, por exemplo, uma possível flexibilidade de utilização na invariabilidade de espaços criteriosamente conformados, duráveis para além de uma função específica. E poder-se-ia dizer o mesmo para a materialidade (sistema construtivo, materiais e detalhes/aplicações), seja no sentido lato da sustentabilidade em face dos bens e recursos disponíveis, seja no sentido estrito de cada projecto, decidindo, por exemplo, a eficiência optimizada do sistema construtivo, a regulação do consumo material, a resistência em termos de longevidade ou efemeridade, a compatibilização energética e ecológica ou, mais simplesmente, equacionando os bens e recursos de proximidade, locais ou regionais, com a oferta global.
Num planeta cada vez mais pequeno, morada definitiva da aventura humana, a finitude abre novas oportunidades a uma Arquitectura com responsabilidade ética, relevância social e significado físico.
Assim, com estas tentativas sumárias de reflexão em torno da Escassez, indiciam-se caminhos de um novo realismo que, como afirma Adrian Forty, estão muito pouco solicitados, provavelmente fora de moda e ainda longe de estarem percorridos. Porém, «le temps du monde fini commence» e a porta está aberta.
João Belo Rodeia
in JA 23 Junho 2006